OROBORUS
em minha janela
nesse instante fiquei a pensar na palavra deus e
se ao meu modo creio o mundo é feito de palavras
esse deus pertence a quem o escreve e a quem lhe
inventa o momento primeiro
e lhe dá forma e lhe diz do derradeiro
esse canto ao meio dia desse dia
em que eu assim como o galo
desaprendi a língua dos relógios
me fez lembrar de que eu esqueci o nome dos dias
e dos meses e me fez querer desinventar este ano que termina na palavra vinte
e me fez pensar na palavra deus
e no desejo de caminhar no rastro do começo
lá onde tudo era nu e sem nome
no chão do princípio onde irrompe a luz
na dobra do que não era tempo
na quebra do silêncio
acordei hoje ao canto desse galo branco
ao meio desse dia de palavra calendária
inventada e escrita pelo humano
e fiquei a pensar que tudo que sabemos é o tudo
que lembramos ou é o tudo que lembraram por nós
assim sabemos quando lembramos do salmo escrito
por um ancião que nem nasceu ou lembramos de um continente que já foi mar ou
lembramos da corredeira de um rio que já secou ou lembramos de uma língua que
já morreu
um galo branco em minha janela cantou
me acordou e me fez pensar na palavra deus
e na palavra tempo
esse tempo-deus uma palavra
escrita em linhas de sombras
esse deus erguido e fechado em oroborus palavra
que vinga – retorna e nos aprisiona no tempo do sem fim
dessa aldeia circunscrita ao verbo
Wanda Monteiro
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