Cobra Norato, 1931
Raul Bopp
Publicado em 1931, Cobra Norato é escrito pelo
poeta gaúcho Raul Bopp (1898-1984). No que toca a concepção e técnica, é um dos
textos mais representativos da primeira geração modernista.
Fragmento
I
Um dia
ainda eu hei de morar nas terras do
Sem-Fim.
Vou andando, caminhando, caminhando;
me misturo rio ventre do mato,
mordendo raízes.
Depois
faço puçanga de flor de tajá de lagoa
e mando chamar a Cobra Norato.
— Quero contar-te uma história:
Vamos passear naquelas ilhas
decotadas?
Faz de conta que há luar.
A noite chega mansinho.
Estrelas conversam em voz baixa.
O mato já se vestiu.
Brinco então de amarrar uma fita no
pescoço
e estrangulo a cobra.
Agora, sim,
me enfio nessa pele de seda elástica
e saio a correr mundo:
Vou visitar a rainha Luzia.
Quero me casar com sua filha.
— Então você tem que apagar os olhos primeiro.
O sono desceu devagar pelas pálpebras
pesadas.
Um chão de lama rouba a força dos
meus passos.
II
Começa agora a floresta cifrada.
A sombra escondeu as árvores.
Sapos beiçudos espiam no escuro.
Aqui um pedaço de mato está de castigo.
Árvorezinhas acocoram-se no charco.
Um fio de água atrasada lambe a lama.
— Eu quero é ver a filha da rainha Luzia!
Agora são os rios afogados,
bebendo o caminho.
A água vai chorando afundando
afundando.
Lá adiante
a areia guardou os rastos da filha da
rainha Luzia.
— Agora sim, vou ver a filha da rainha Luzia!
Mas antes tem que passar por sete portas
Ver sete mulheres brancas de ventres
despovoados
guardadas por um jacaré.
— Eu só quero a filha da rainha Luzia.
Tem que entregar a sombra para o bicho do fundo
Tem que fazer mironga na lua nova.
Tem que beber três gotas de sangue.
— Ah, só se for da filha da rainha Luzia!
A selva imensa está com insônia.
Bocejam árvores sonolentas.
Ai, que a noite secou. A água do rio
se quebrou.
Tenho que ir-me embora.
E me sumo sem rumo no fundo do mato
onde as velhas árvores grávidas
cochilam.
De todos os lados me chamam:
— Onde vai, Cobra Norato?
Tenho aqui três árvorezinhas jovens,
à tua espera.
— Não posso.
Eu hoje vou dormir com a filha da
rainha Luzia.
IV
Esta é a floresta de hálito podre,
parindo cobras.
Rios magros obrigados a trabalhar.
A correnteza arrepiada junto às margens
descasca barrancos gosmentos.
Raízes desdentadas mastigam lodo.
A água chega cansada.
Resvala devagarinho na vasa mole
com medo de cair.
A lama se amontoa.
Num estirão alagado
o charco engole a água do igarapé.
Fede...
Vento mudou de lugar.
Juntam-se léguas de mato atrás dos pântanos de aninga.
Um assobio assusta as árvores.
Silêncio se machucou.
Cai lá adiante um pedaço de pau seco:
Pum
Um berro atravessa a floresta.
Correm cipós fazendo intrigas no alto dos galhos.
Amarram as árvorezinhas contrariadas.
Chegam vozes.
Dentro do mato
pia a jurucutu.
— Não posso.
Eu hoje vou dormir com a filha da
rainha Luzia.
XXXII
— E agora, compadre,
eu vou de volta pro Sem-Fim.
Vou lá para as terras altas,
onde a serra se amontoa,
onde correm os rios de águas claras
em matos de molungu.
Quero levar minha noiva.
Quero estarzinho com ela
numa casa de morar,
com porta azul piquininha
pintada a lápis de cor.
Quero sentir a quentura
do seu corpo de vaivém.
Querzinho de ficar junto
quando a gente quer bem, bem;
Ficar à sombra do mato
ouvir a jurucutu,
águas que passam cantando
pra gente se espreguiçar,
E quando estivermos à espera
que a noite volte outra vez
eu hei de contar histórias
(histórias de não-dizer-nada)
escrever nomes na areia
pro vento brincar de apagar.
Nasceu a 04 Agosto 1898 (Vila Pinhal RS) - Morreu em 02 Junho 1984 (Rio de Janeiro)
PoÉticas ArturiAnas
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