sábado, 5 de março de 2022

Manifesto Antropófago - Oswald de Andrade

 



MANIFESTO ANTROPÓFAGO Só a ANTROPOFAGIA nos une. Socialmente. Economicamente. Filosoficamente. Única lei do mundo. Expressão mascarada de todos os individualismos, de todos os coletivismos. De todas as religiões. De todos os tratados de paz. Tupi, or not tupi that is the question. Contra todas as catequeses. E contra a mãe dos Gracos. Só me interessa o que não é meu. Lei do homem. Lei do antropófago. Estamos fatigados de todos os maridos católicos suspeitos postos em drama. Freud acabou com o enigma mulher e com os sustos da psicologia impressa. O que atropelava a verdade era a roupa, o impermeável entre o mundo interior e o mundo exterior. A reação contra o homem vestido. O cinema americano informará. Filhos do sol, mãe dos viventes. Encontrados e amados ferozmente, com toda a hipocrisia da saudade, pelos imigrados, pelos traficados e pelos touristes. No país da cobra grande

1 . Foi porque nunca tivemos gramáticas, nem coleções de velhos vegetais. E nunca soubemos o que era urbano, suburbano, fronteiriço e continental. Preguiçosos no mapa-múndi do Brasil

2 . Uma consciência participante, uma rítmica religiosa. Contra todos os importadores de consciência enlatada. A existência palpável da vida. E a mentalidade pré-lógica para o Sr. Lévy-Bruhl estudar. Queremos a Revolução Caraíba

3 . Maior que a revolução Francesa. A unificação de todas as revoltas eficazes na direção do homem. Sem nós a Europa não teria sequer a sua pobre declaração dos direitos do homem. A idade de ouro anunciada pela América. A idade de ouro. E todas as girls.

1 Selva amazônica; na mitologia indígena da amazônia, "cobra grande" é o espírito das águas. Esta entidade foi motivo de um longo poema antropófago, Cobra Norato (1931), de Raul Bopp (1898/1984), que, ao lado de Macunaíma ((1928), de Mário de Andrade (1893/1945), compõe exemplos da antropofagia oswaldiana.

2 Referência à extensão continental do país e à necessidade de resolver os problemas lingüísticos no Brasil, se pautava pela tradição lusitana, ignorando as especificidades do país. Retomada, sob outro ângulo, da grande polêmica por José de Alencar (1829 / 1877), na vigência do Romantismo brasileiro no século XIX.

 3 Oswald idealiza a união dos indígenas através do vocábulo caraíba, que designa tanto uma das comunidades indígenas com as quais os primeiros portugueses tomaram contato à época do Descobrimento do país, que viviam mais ao norte, quanto uma grande família lingüística a que pertenciam várias tribos brasileiras mais ao sul.

Filiação. O contato com o Brasil Caraíba. Ori Villegaignon print terre. Montaigne. O homem natural. Rosseau. Da Revolução Francesa ao Romantismo, à Revolução Bolchevista, à revolução Surrealista e ao bárbaro tecnizado de Keyserling. Caminhamos. Nunca fomos catequizados. Vivemos através de um direito sonâmbulo. Fizemos Cristo nascer na Bahia. Ou em Belém do Pará. Mas nunca admitimos o nascimento da lógica entre nós. Contra o Padre Vieira

4 . Autor do nosso primeiro empréstimo, para ganhar comissão. O rei-analfabeto disseralhe: ponha isso no papel mas sem muita lábia. Fez-se o empréstimo. Gravou-se o açúcar brasileiro. Vieira deixou o dinheiro em Portugal e nos trouxe a lábia. O espírito recusa-se a conceber o espírito sem o corpo. O antropomorfismo. Necessidade da vacina antropofágica. Para o equilíbrio contra as religiões de meridiano. E as inquisições exteriores. Só podemos atender ao mundo orecular. Tínhamos a justiça codificação da vingança. A ciência codificação da Magia. Antropofagia. A transformação permanente do Tabu em totem. Contra o mundo reversível e as idéias objetivadas. Cadaverizadas. O stop do pensamento que é dinâmico. O indivíduo vítima do sistema. Fonte das injustiças clássicas. Das injustiças românticas. E o esquecimento das conquistas interiores. Roteiros. Roteiros. Roteiros. Roteiros. Roteiros. Roteiros. Roteiros. O instinto Caraíba. Morte e vida das hipóteses. Da equação eu parte do Cosmos ao axioma Cosmos parte do eu. Subsistência. Conhecimento. Antropofagia. Contra as elites vegetais

5 . Em comunicação com o solo. Nunca fomos catequizados. Fizemos foi o Carnaval. O índio vestido de senador do Império. Fingindo de Pitt. Ou figurando nas óperas de Alencar cheio de bons sentimentos portugueses

6 . Já tínhamos o comunismo. Já tínhamos a língua surrealista. A idade de ouro. Catiti Catiti7 Imara Notiá Notiá Imara Ipeju8 A magia e a vida. Tínhamos a relação e a distribuição dos bens físicos, dos bens morais, dos bens dignários. E sabíamos transpor o mistério e a morte com o auxílio de algumas formas gramaticais. Perguntei a um homem o que era o Direito. Ele me respondeu que era a garantia do exercício da possibilidade. Esse homem chama-se Galli Mathias. Comi-o.

4 Antônio Vieira (1608/1697), lisboeta de nascimento, fez seus estudos com os jesuítas na Bahia, ordenando-se aos 26 anos. Tinha idéias avançadas para sua época e devido a elas foi inúmeras vezes criticado. Oswald de Andrade refere-se, aqui, à investida políticoeconômica na exploração do açúcar maranhense, à época do período colonial, o que beneficiou apenas a metrópole portuguesa, deixando em franca miséria a então colônia.

5 Referência à elite intelectual que busca copiar os modelos europeus, em exclusão do sentimento de "brasilidade". Neste sentido, os vegetais são entendidos como seres vivos sem mobilidade, o que equivale a dizer sem a capacidade crítica que fomenta as mudanças

6 Junção, numa única referência, da produção romanesca indianista de José Martiniano de Alencar (1829/1877), escritor romântico brasileiro de reconhecido valor, com a ópera O guarani, do músico também romântico Antônio Carlos Gomes (1836/1896), cujo libreto foi escrito a partir do romance homônimo de Alencar. Em ambos textos o herói indígena, Peri, tem atitudes cavalheirescas em consonância aos grandes senhores portugueses.

 7 Catiti catiti/ Imara Notiá / Notiá Imara / Ipeju: pequeno "poema" em língua indígena, a qual, pelo apelo sonoro e lúdico, é aproximada da estética surrealista. Couto Magalhães traduziu por: Lua nova, ó Lua Nova! Assoprai em lembranças de mim; eis-me aqui, estou em vossa presença; fazei com que eu tão somente ocupe seu coração.

8 "Lua Nova, ó Lua Nova, assopra em Fulano lembranças de mim", in O Selvagem, de Couto Magalhães.

Só não há determinismo onde há o mistério. Mas que temos nós com isso? Contra as histórias do homem que começam no Cabo Finisterra9 . O mundo não datado. Não rubricado. Sem Napoleão. Sem César. A fixação do progresso por meio de catálogos e aparelhos de televisão. Só a maquinaria. E os transfusores de sangue. Contra as sublimações antagônicas. Trazidas nas caravelas. Contra a verdade dos povos missionários, definida pela sagacidade de um antropófago, o Visconde de Cairu

10: - É mentira muitas vezes repetida. Mas não foram cruzados 11 que vieram. Foram fugitivos de uma civilização que estamos comendo, porque somos fortes e vingativos como o Jabuti

12 . Se Deus é a consciência do universo Incriado, guaraci13 é a mãe dos viventes. Jaci

13 é a mãe dos vegetais. Não tivemos especulação. Mas tínhamos adivinhação. Tínhamos Política que é a ciência da distribuição. E um sistema social-planetário. As migrações. A fuga dos estados tediosos. Contra as escleroses urbanas. Contra os Conservatórios e o tédio especulativo. De William James e Voronoff. A transfiguração do Tabu em totem. Antropofagia. O pater famílias e a criação da Moral da Cegonha

14: Ignorância real das coisas + fala (sic.) de imaginação + sentimento de autoridade ante a prole curiosa. É preciso partir de um profundo ateísmo para se chegar à idéia de Deus. Mas a caraíba não precisava. Porque tinha Guaraci. O objetivo criado reage como os Anjos da Queda. Depois Moisés divaga. Que temos nós com isso? Antes dos portugueses descobrirem o Brasil, o Brasil tinha descoberto a felicidade. Contra o índio de tocheiro. O índio filho de Maria

15, afilhado de Catarina de Médicis e genro de D. Antônio de Mariz. A alegria é a prova dos nove

16 . No matriarcado de Pindorama

17 . Contra a Memória fonte do costume. A experiência pessoal renovada.

9 Referência ao ciclo das grandes descobertas ultramarinas portuguesas iniciadas em 1421, sob o comando do infante Dom Henrique, filho de Dom João I, que, para o Reino de Portugal, culminou com a Descoberta do Brasil em 1500; o acidente geográfico mencionado por Oswald é a conhecida Ponta de Sagres, ou seja, um cabo formado por rochas elevadas, lugar ermo e de beleza trágica de onde teriam partido as primeiras expedições oceânicas portuguesas, ou seja, a expansão do homem europeu; na realidade, estas expedições sob o comando do infante Dom Henrique partiram da Vila de Lagos, localizada a cerca de 30 km a leste da Ponta de Sagres, na região do Algarve.

10 José da Silva Lisboa, economista do início do século XIX que, tendo adotado a política liberal do Marquês de Pombal, posicionou-se contrário à permanência jesuíta no Brasil.

 11 Moeda portuguesa feita de ouro ou prata.

12 Réptil da ordem dos quelônios e da família das tartarugas; habitante das matas brasileiras, nas religiões indígenas representa a perseverança e a força.

13 Guaraci e Jaci: entidades divinas indígenas que representam o sol e a lua, respectivamente. São os dois princípios que governam o mundo.

14 Oswald refere-se à repressão sexual das crianças, as quais eram doutrinadas no sentido da inexistência de vida sexual na procriação; à cegonha era atribuída a função de entregar os bebês aos seus pais.

15 Índio filho de Maria, afilhado de Catarina de Médicis e genro de D. Antônio de Mariz: por alusão a personagens extraídos de obras indianistas, Oswald propõe o repúdio ao aculturamento dos índios pela civilização branca cristã e ocidental.

16 Elaboração matemática para comprovar o resultado de operações aritméticas elementares.

17 Em tupi, terra de palmeiras; designa, por extensão, o Brasil, cuja costa litorânea era coberta pela planta; a palmeira, desde o poema canção do exílio, do poeta romântico Gonçalves Dias (1823/1864), transformou-se em um dos ícones do país.

Somos concretistas. As idéias tomam conta, reagem, queimam gente nas praças públicas. Suprimamos as idéias e as outras paralisias. Pelos roteiros. Acreditar nos sinais, acreditar nos instrumentos e nas estrelas. Contra Goethe, a mãe dos Gracos, e a Corte de D. João VI18 .

A alegria é a prova dos nove. A luta entre o que se chamaria Incriado e a Criatura - ilustrada pela contradição permanente do homem e o seu Tabu. O amor cotidiano e o modusvivendi capitalista.

Antropofagia. Absorção do inimigo sacro. Para transformá-lo em totem. A humana aventura. A terrena finalidade. Porém, só as puras elites conseguiram realizar a antropofagia carnal, que traz em si o mais alto sentido da vida e evita todos os males identificados por Freud, males catequistas. O que se dá não é uma sublimação do instinto sexual. É a escala termométrica do instinto antropofágico. De carnal, ele se torna eletivo e cria a amizade. Afetivo, o amor. Especulativo, a ciência. Desvia-se e transfere-se. Chegamos ao aviltamento. A baixa antropofagia aglomerada nos pecados de catecismo - a inveja, a usura, a calúnia, o assassinato. Peste dos chamados povos cultos e cristianizados, é contra ela que estamos agindo. Antropófagos.

Contra Anchieta19 cantando as onze mil virgens do céu, na terra de Iracema20, - o patriarca João Ramalho fundador de São Paulo. A nossa independência ainda não foi proclamada. Frase típica de D. João VI: - Meu filho, põe essa coroa na tua cabeça, antes que algum aventureiro o faça21! Expulsamos a dinastia. É preciso expulsar o espírito bragantino, as ordenações e o rapé de Maria da Fonte22 . Contra a realidade social, vestida e opressora, cadastrada por Freud - a realidade sem complexos, sem loucura, sem prostituições e sem penitenciárias do matriarcado23 de Pindorama.

Oswald de Andrade

Em Piratininga24

 Ano 374  da Deglutição do Bispo Sardinha25

(Revista de Antropofagia,

 Ano I, No. I, maio de 1928.)

18 Rei de Portugal, que veio para o Brasil-colônia em 1808 com todo seu séquito, fugindo do avanço napoleônico na Europa. Oswald faz referência à usura desmedida dos cortesãos.

 19 José de Anchieta (1534/1597), padre jesuíta que veio para o Brasil no início da colonização portuguesa e que, a pretexto de catequizar os índios, criou um sistema de desculturação pela arte teatral.

20 Anagrama de América, é também o nome da índia protagonista do romance homônimo de José de Alencar (1829/1877) que, junto com O guarani, se transformou em emblema de brasilidade durante a vigência do romantismo no país.

 21 Oswald menciona, de forma irônica e jocosa, o ato da Independência do Brasil, ocorrida em 7 de setembro de 1822, protagonizada pelo primogênito do então rei de Portugal. O príncipe português governou até 1831 e ficou conhecido como Dom Pedro I, o primeiro Imperador do Brasil.

22 Camponesa portuguesa que liderou uma rebelião, em 1846, contra as opressões político-econômicas de D. Maria da Glória, então rainha de Portugal. Pleiteava, entre outras coisas, a colocação de produtos agrícolas portugueses no mercado interno que estava, na época, dominado por produtos ingleses.

23 Oswald fala no matriarcado numa referência à libertação do sujeito, em oposição ao patriarcado, este sim, governado por instituições de poder amplamente castradoras e cheias de interditos.

24 Em língua indígena, nome da região onde surgiu a futura cidade de São Paulo.

25 Oswald busca uma marcação temporal para a existência brasileira, que no Manifesto começa com o primeiro ato antropófago conhecido oficialmente; o Bispo Sardinha, isto é, Pero Fernandes (?/1556), naufragou no litoral do nordeste brasileiro e morreu como vítima sacrificial dos índios caetés. Oswald equivocou-se nas datas, acrescentando 2 anos ao tempo decorrido entre a morte do Bispo Sardinha e o ano de publicação do Manifesto Antropófago. Entretanto, Oswald parece desconhecer as cartas de Américo Vespúcio, em uma das quais o aventureiro florentino afirma ter assistido um ritual antropofágico em 1501, na Praia dos Marcos, no Rio Grande do Norte, em que a vítima era um europeu.

Oswald de Andrade




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Artur Gomes

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 Manifesto Antropófago ou Antropofágico foi um manifesto literário escrito por Oswald de Andrade, publicado em maio de 1928, que tinha por objetivo repensar a dependência cultural brasileira.

O Manifesto foi publicado na primeira edição da Revista de Antropofagia, meio de comunicação responsável pela difusão do movimento antropofágico brasileiro. A linguagem do manifesto é majoritariamente metafórica, contendo fragmentos poéticos bem-humorados e torna-se a fonte teórica principal do movimento.

Oswald utiliza durante o desenvolvimento do manifesto, teorias de diversos autores e pensadores mundiais, como Freud, Marx, Breton, Francis Picabia, Rousseau, Montaigne e Hermann Keyserling. Combinadas as idéias destes autores e a ideologia desenvolvida por Oswald, retomam-se características dos primórdios da formação cultural brasileira: a combinação das culturas primitivas (indígena e africana) e da cultura latina, formada pela colonização européia. E forma-se o conceito errôneo de caracterizar, perante a colonização, o selvagem como elemento agressivo.

A intenção de promover o resgate da cultura primitiva é notável no manifesto, e o autor o faz por meio de um processo não harmonioso de tentar promover a assimilação mútua por ambas as culturas. Oswald, no entanto, não se opõe drasticamente à civilização moderna e industrializada, mas propõe um certo tipo de cautela ao absorver aspectos culturais de outrem, para que a modernidade não se sobreponha totalmente às culturas primitivas. E também, para que haja maior cuidado ao absorver a cultura de outros lugares, para que não haja absorção do desnecessário e a cultura brasileira vire um amontoado de fragmentos de culturas exteriores.

No decorrer do manifesto o autor reconta, metaforicamente, a História do Brasil, associando figuras como Padre Vieira, Anchieta, a Mãe dos Gracos, a corte de D. João VI, a Moral da Cegonha à potência mítica de Jabuti, Guaraci, Jaci e da Cobra Grande. Oswald caracteriza como “idade de ouro” a época do Brasil não colonizado, com sua própria língua e cultura.

O Manifesto Antropofágico foi um marco no Modernismo brasileiro, pois não somente mudou a forma do brasileiro de encarar o fluxo de elementos culturais do mundo, mas também colocou em evidência a produção própria, a característica brasileira na arte, ascendendo uma identidade tupiniquim no cenário artístico mundial.

Fontes:
http://pt.wikipedia.org/wiki/Manifesto_Antropófagohttp://www.itaucultural.org.br/aplicexternas/enciclopedia_ic/index.cfm?fuseaction=marcos_texto&cd_verbete=339

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