quinta-feira, 11 de janeiro de 2024

múltiplas poéticas

o belo nem sempre é bom

o bom nem sempre é belo

deixo as linhas sinuosas do complexo

irem seguindo o parabelo

 

Artur Kabrunco

https://fulinaimargem.blogspot.com/



Poemas de "Atmosfera Ambar – diálogo poético em quatro cenas/ purgatório [cena três]", by Ziul Serip.

local: Ex-Calibar – cidade de Porto Alegrópolis;
ambiente: penumbra, melodias, alaridos e álcool;
tempo: século XX – meados e confins dos anos 80;
atores: poeta, pianista, dançarina, bêbado e barman.

***

a dançarina

ardem arbustos
em pedras de jade

no limbo do inferno
em corpos dispersos

um sobe-e-desce
de retido hálito

enxofre

*

o pianista

é preciso envol ver-se
no abismo céu de fósforo

onde o beira-céu assedia estrelas
em uma ingênua e púrpura odisseia

*

o bêbado

ouvir – ao riscar o fósforo
silêncios de vidro cortado

olhos averiguando vozes no (ó) cio
sol exprimindo timbres alucinantes

em meandros uniformes
de um arco-íris cintilante

*

a dançarina

à espera de alguém que as absorvam!?

*

o barman

mariposas: famintas por luzes e gozos!?

*

o poeta

não dissolvemos os sentidos
da lâmina prata e abissal da pálpebra

do corte mínimo e noturno alumínio

*

o pianista

corvos o que somos ou engodos?

poetas gravam na memória
os cenários das palavras

isentas de concisão
fixa e acessória

versos duros da história
que trilha a alma e lavra

*

a dançarina

eis o fôlego das metáforas: pétalas
de papoulas e (ver)-
rugas avaras

*

o bêbado

o olho vazio sab(r)e
o dia vadio engendra

*

o poeta

ouve o vento: timbre da tarde
corroendo o sol curvo
e noturno uivo

antes que anoiteçam
violáceas balas de aço:
espumas salivas de sangue

– o tempo é exíguo –

sob a árvore o olho ruivo
do sol fulvo

o tédio nada (ir)
rompe

a noite é um açoite
na estrela carcaça

único olho oculto
sol intruso inerte e fixo
exposto deteriora-se turvo

– o tempo é resíduo –

cartuchos cartilagens
cristais de carne

mil olhos murchos!
o tiro pela culatra?

abaixo sobre a têmpora
ou sobre o mamilo?

ao coração não há
fuga nem exílio

só o retumbo ruído
da víbora (sede secreta)

– o tempo é ambíguo –

a (t) arde [n]é
voa n(um) jorro (im) preciso
esvai-se para fugir dessa

colheita

um sopro (in) digesto
um tiro

a

teia tarântula penetra
ex-trêm(ul)a nas frestas dos ossos

não traço em meu rosto rasuras
nem teu em céu azul
ilhado nu

quanto mais a varredura

sorve dos ossos
o líquido espectro

argilosas granadinas cobrem
tijolos de salpicos salmilhados

não (a)tinjo o céu de ouro
sem que o brilho de topázios ditosos
me leve dessa tarde in(can)de(cre)[s]cente

penumbra: uma ave
plúm(b)ea a íris
engrena

véu grisalho: uma estrela
nébula na tarde
anêmona

– o tempo é decíduo –

*
imagem: "vapor aquoso" (fotografia) by Mehmet Ozgur 


O homem com a flor na boca

cada boca tem sua língua
cada língua tem seu vício
cada vício seu desejo
metáfora de fogo quem sabe
ou flor do desejo quem dera
o desejo da língua é o beijo
vermelha flor de aquarela
a rosa quem me deu foi ela

nos olhos da flor o que sinto
no coração absinto o que vejo
e sem nenhum sacrifício
amar de forma indireta
sem pensar fim ou início
de alguma jura secreta
a seta no arco é a flecha
o alvo da flecha é a seta

a flor na boca é desejo
o beijo na flor é a meta

Artur Gomes
Leia mais no blog https://fulinaimatupiniquim.blogspot.com/


 

Cada homem tem duas biografias eróticas.
Geralmente, fala-se apenas da primeira: a lista de seus amores e encontros amorosos.
É provável que a segunda biografia seja mais interessante: as muitas mulheres que desejámos e que nos escaparam, a dolorosa história das possibilidades não realizadas.
Mas ainda há uma terceira categoria secreta perturbadora de mulheres. São aquelas com as quais não pudemos e não soubemos ter nada comum. Gostamos delas, elas gostaram de nós, mas ao mesmo tempo entendemos imediatamente que não podíamos tê-las porque estar com elas nos encontramos do outro lado da fronteira. »

"o livro do riso e do esquecimento", 

Milan Kundera 


imagem Felipe Stefani

DA CARNE DA PALAVRA

Tanussi Cardoso, poeta

Ator, produtor, videomaker e agitador cultural, o poeta Artur Gomes tem assinatura própria. SagaraNAgensFulinaímicas, seu mais novo livro, repleto de citações a partir do título, é a prova generosa do que afirmo: um inventário da pulsação de sua escritura, uma das mais iluminadas, entre os remanescentes da geração que se inicia nos anos 60-70.

Mesmo mirando certa desconstrução narrativa, o autor semeia as raízes culturais, germinadas naquelas décadas, que desabrocharam como furacão em nossa arte, principalmente vindas da canção popular, com sua palavra cantada, da poesia marginal, da Tropicália, do Concretismo, do poema-postal, da poesia visual, do cinema e, mesmo, dos quadrinhos.

Todo esse caldeirão cultural, todas essas referências e linguagens eram (são) muito próximas: Caetano, Gil, Torquato, Glauber, Leminski, Waly, Gullar, Hilda Hilst... E é desse quadro geracional (e bem lá atrás,Drummond, Murilo Mendes, Bandeira, Cabral, Quintana, Mário, Oswald e Guimarães Rosa - e principalmente -, a trilogia dos malditos: Rimbaud, Baudelaire e Mallarmé, além dos ecos do mestre beat, Allen Ginsberg), é desse manancial criativo que o poeta consegue desarmar o que nele se encontra envolto, de forma atávica, e reafirmar seus próprios tempo e potência, com o refinamento de sua fala.

Ao unir todo artefato onde exista possibilidade de poesia, Artur Gomes habita o lugar entre a palavra e a imagem, ao experimentar os sentidos que lhe chegam, sugando os afluentes existentes nas estruturas tradicionais de nossas artes, e reescrevendo-os a seu bel-prazer, num mix de nostalgia e futuro.

“visto uma vaca triste como a tua cara:
estrela cão gatilho morro
a poesia é o salto de uma vara”

De forma particular, o autor parece nos indicar algo que se confunde com transgressão, mas, ao mesmo tempo, mantém a linha tênue da poesia clássica, ao flertar com um romantismo de tintas fortes, e tocando, igualmente, o surrealismo, com uma violência verbal, que cheira à flor e à brutalidade. Cada poema possui sua própria respiração, pausa e pontuação emocionais. Quem não gostar de sangrar e ir fundo no mais recôndito dos prazeres é melhor não prosseguir na leitura, mas quem tiver coragem de encarar a vida de frente e se deliciar com versos saborosos e extremamente imagéticos, entre no mundo do poeta, de imediato, e sentirá a alegria de descobrir uma poesia a que não se pode ficar indiferente.

“a língua escava entre os dentes
a palavra nova
fulinaimânica/sagarínica
algumas vezes muito prosa
outras vezes muito cínica”

Ainda que não pretenda novas experiências formais, o autor consegue alcançar perspectivas ousadas e radicais, em vários enquadramentos linguísticos, sempre disponíveis para o espanto, já que quando falamos de poesia, tocamos em lados inexatos, onde qualquer inversão de objetividade, e da própria realidade, é sempre bem-vinda. Sua poesia tem muito da desordem, da inobservância de regras, do não sentido, e apresenta um discurso contrário a certo pensamento lógico, fazendo surgir nas páginas do livro, algumas impurezas saudáveis.

“te procurei na Ipiranga
não te encontrei na Tiradentes
nas tuas tralhas tuas trilhas
nos trilhos tortos do Brás
fotografei os destroços
na íris do satanás”

SagaraNAgensFulinaímicas nos apresenta uma peça de tom quase operístico e, paradoxalmente, para um só personagem: o Amor. E o desenho poético dessa montagem pressupõe uma grande carga lírica, alegórica e, tantas vezes, dramática, ao retratar o som universal da Paixão, perseguindo a imagem ideal dos limites do desejo. Seus versos são movidos por esse sentimento dionisíaco, e por tudo que é excesso, por tudo que é muito, como na música de Caetano.

“te amo
e amor não tem nome
pele ou sobrenome
não adianta chamar
que ele não vem quando se quer
porque tem seus próprios códigos
e segredos”

E indaga e responde:

“até quando esperaria?
até que alguém percebesse
que mesmo matando o amor
o amor não morreria”

Em seu texto, há uma espécie de dança frenética, onde interagem os quatro elementos do Universo – Terra, Água, Fogo e Ar – numa feitiçaria cósmica em contínuo transe mediúnico. Poesia que é seta certeira no coração dos caretas e dos conformados, ao apontar para as possíveis descobertas inesperadas da linguagem, inebriada pela vida, pelo cantar
amoroso, pelo encontro dos corpos.

“e para espanto dos decentes
te levo ao ato consagrado
se te despir for só pecado
é só pecar que me interessa”

Dono de uma sonoridade vocabular repleta de aliterações e assonâncias, que remetem à intensa oralidade e à pulsão musical, refletindo no leitor o desejo de ler os poemas em voz alta, o poeta brinca com as palavras, cria neologismos, utiliza-se de colagens originais, e soma ao seu vasto arsenal de recursos, o uso das antíteses, dos paradoxos, das metonímias, das metáforas, dos pleonasmos e, principalmente, das hipérboles, através de poemas de impactante beleza. Esse jogo vocabular, que a tudo harmoniza, transforma a dinâmica do verso, dá agilidade, tensão e ritmo envolventes a uma poesia elétrica e eletrizante. Um bloco de tesão carnavalizante e tropical - atrás de Artur Gomes só não vai quem não o leu.

“quero dizer que ainda é cedo
ainda tenho um samba/enredo
tudo em nós é carnaval”

De forma lúdica e irônica, reconstrói, ou reverte, as intenções de Guimarães Rosa, quando Sagarana se mistura à ideia de paisagens e ao sentido de sacanagens; e às de Mario de Andrade - onde Macunaíma reparte seu teor catártico em poéticas folias, ou em fulias de imagens, ou seja, em fulinaímicas poesias, banhadas de caos e humor.

“é língua suja e grossa
visceral ilesa
pra lamber tudo que possa
vomitar na mesa
e me livrar da míngua
desta língua portuguesa”

Ao seguir de perto o conceito metafórico do processo crítico e cultural da Antropofagia, o artista ratifica seus valores, com sua língua literária, e reafirma o ato de não se deixar curvar diante de certa poesia catequisada pela mesmice e pelo lugar comum, distanciando-se da homogeneidade de certo academicismo impotente e de certos parâmetros poéticos com que já nos acostumamos. De acordo com o próprio autor, revelado em uma entrevista, SagaraNAgensFulinaímicas é um pedido de bênção a seus Mestres, imbuído do teor catártico que sua poesia contém, como o fragmento do poema que abre o livro:

“guima meu mestre guima
em mil perdões eu vos peço
por esta obra encarnada
na carne cabra da peste”

E afirma:

“só curto a palavra viva
odeio essa língua morta
poema que presta é linguagem
pratico a SagaraNAgem
no centro da rua torta”

No livro, os poemas se interpenetram, linguisticamente, libidinosos, doces e cruéis, vampiros de imagens ferrenhas,num aparente jogo de representação, onde o rosto do poeta se mostra e se esconde, de acordo com a mutação e o reflexo de seus espelhos interiores. Seus textos ora afirmam, ora desmentem o já dito, a nos lembrar um de seus ídolos, Raul Seixas, e a sua metamorfose ambulante. Sentimentos contraditórios, como se o autor quisesse, propositalmente, escorregar segredos pelos nossos olhos,ambiguamente, rindo de nós, a nos instigar: “Desnudem a minha esfinge!”

“eu não sou flor que se cheire
nem mofo de língua morta”

Na verdade, sua poesia apresenta vários (re) cortes, várias direções, vários abismos e formas de olhar a vida e o mundo. Como se o verdadeiro Artur se dissolvesse em outros, a cada poema, e essa dissipação o transformasse em alguém improvável, impalpável. Errante. Artur Gomes, ele mesmo, são muitos. E todos nós.Afinal, “o poeta é um fingidor”, ou não?

“a carne que me cobre é fraca
a língua que me fala é faca
o olho que me olha vaca
alfa me querendo beta
juro que não sou poeta”

Tantas vezes escatológico e sensual, numa performance textual que parece uma metralhadora giratória, o seu imaginário poético explode em tatuagens, navalhas, sangue, cicatrizes, punhais, facas, cuspe, pus, línguas, dedos, dentes, unhas, seios, paus, porra, carne, flores e lençóis, como um paraíso construído num inferno, e toca o nosso céu interior, nas ondas de um mar verde escondido em nosso peito. Na nossa melhor alma.

Sem falsos pudores, o autor procura, em seu liquidificador de palavras, misturar o erótico, o profano e o sagrado, com cortes de cinismo e grande dose de humana solidariedade. Equilibrista na corda-bamba, sem rede de proteção, entre razão e delírio, instiga dualidades com seus versos de alta voltagem poética. Com linguagem rebuscada, seu trabalho ultrapassa os limites das páginas do livro, e reverbera como tambor, mesmo após o término de sua leitura.

“a carne da palavra
: POESIA

l a v r a q u e s o l e t r o
todo Dia”

A poesia de cunho social é, igualmente, referência obrigatória em seu trabalho, desde o início de sua carreira literária, marcadamente, em Jesus Cristo Cortador de Cana, de 1979, mas, principalmente, no memorável e premiado O Boi Pintadinho, de 1980. Esses poemas político-sociais, junto ao tema amoroso, também encontramos em outras obras importantes do poeta, como Suor & Cio, de 1985, Couro Cru & Carne Viva, de 1987 e 20 Poemas com Gosto de JardiNÓpolis& Uma Canção com Sabor de Campos, de 1990, e se inserem em todos os seus livros posteriores, que culminam agora em SagaraNAgensFulinaímicas.

Em suas viagens imemoriais, o poeta mistura São Paulo, Copacabana, Búzios, calçadas, origem, chão, mares, cactos, sertão, onde tudo sangra de maneira violentamente bela e sem volta. Só a língua a ser reconstruída em poesia.

“ando por são Paulo meio Araraquara
a pele índia do meu corpo
concha de sangue em tua veia
sangrada ao sol na carne clara”

Artur Gomes sabe que ao escritor cabe proporcionar beleza e prazer. Entende que a poesia existe para expressar a condição humana, tocar o coração e a emoção do outro, e dar oportunidade para que seu interlocutor tenha chances de conhecer-se mais e melhor. Eque só há um meio de o poeta conseguir seu intento: cuidar e aperfeiçoar a linguagem. Sempre coerente, Artur Gomes sublinha o essencial de seu pensamento, ratificando em seu trabalho que as duas maiores palavras da nossa língua são amor e liberdade.

“a coisa que me habita é pólvora
dinamite em ponto de explosão
o país em que habito é nunca
me verás rendido a normas
ou leis que me impeçam a fala”

SagaraNAgensFulinaímicas veio confirmar o que os leitores do poeta já sabiam: Artur Gomes é um artista instigante, um cantador que desafia rótulos. No seu fazer poético, há um desfocar proposital da realidade, onírico e cinematográfico, que mergulha em constantes vulcões, em permanente ebulição – um texto em contínuo movimento.

Sua poesia metalinguística, plástica, furiosa, delicada, passional, corporal, sexual, desbocada, invasiva, libertária, corrosiva, visceral,abusada, dissonante, épica é, antes de tudo, a poesia do livre desejo e do desejo livre. Nela, não há espaço para o silêncio: é berro, uivo, canto e dor. Pulsão. Textura de vida. Uma poesia que arde (em) seu rio de palavras

Lembrando: há 2 anos o imenso Poeta Thiago de Mello partiu do mundo...

DECRETO DE DESPEDIDA

(* inspirado no [ou paráfrase ao] poema "Os Estatutos do Homem", de Thiago de Mello)

Que essa manhã cinzenta seja convertida em
uma ensolarada manhã de domingo,
com girassóis
em todas as janelas abertas
para muitos verdes de esperança,
e que nenhum homem sequer
duvide mais de outro homem,
nunca mais a mentira
somente a verdade
como entrada
prato principal
e sobremesa

Que lobos e cordeiros
sejam lobos e cordeiros cordiais
em amizade sincera e decente,
que a justiça seja clara
e a claridade de ver as coisas, sempre justa,
que a alegria tremule radiante
sempre hasteada na alma,
e que seja permitido
no resto dos dias que restarem
aos homens
aos animais
às florestas
às águas doces, salgadas, lagos ou mangues
o milagre do amor
da vida
do verde
da flor

Que o pão finalmente se reparta
em tantas partes quantas forem
as fomes de cada um,
até virar semente
com direito ao broto
ao fruto
e ao pão do outro

e que todos possam sair por aí de branco
ainda mais belos
do que todas as estrelas
constelações
ou galáxias,
e que possam sorrir como as andorinhas
ou desfilar pelas ruas
com muita ternura na lapela
na janela
ou na porta da alma

Que nenhum centavo custe a vida
que nenhum salário corroa a vida
que nenhum dinheiro tire a vida

Que a liberdade vença
que a paz no mundo se restabeleça
e que o amor floresça
como um mar na imensidão de TODOS nós!

Pois, do contrário,
quem se atreverá a fazer outro 'estatuto' aos homens
que nos acalente a alma
tal qual Thiago?

(Nic Cardeal, 14.01.2022 - para Thiago de Mello, quando o Poeta do Amazonas subiu 'ao barco de Caronte', com seu caderno de anotar versos



A Flor do Mangue

para Cristina Bezerra

 

um dia em Gargaú

atravesso para o Pontal

onde o paraíba beija  atlântico

num ato transexual

 

outro dia na barra

onde o itabapoana

é quem beija o lixo atlântico

penso  quântico  caranguejo

é o beijo do desprezo

 

são francisco não me engana

nas sagaranagens que ele faz comigo

   eu procuro A Flor do Mangue

             no litoral do teu umbigo

 

Artur Gomes

www.fulinaimagens.blogspot.com


Veio um instante, partiu de novo,
Leve, sem nome...
Para que nomes? Era azul e voava...

No véu das horas punha o seu motivo.
Partiu. E nem
Ficou sabendo
Como eu, acaso, me chamava...

Mario Quintana


    REDEMOINHOS

Tua mão
na rede
não é peixe
- nem espere que eu te diga
onde fica a isca.

Que diabo de poeira essa
a turvar os olhos, a alma, os sentidos,
não sei dizer se 'inda te acredito
quando vens depois das seis,
de mês em mês,
e esqueces o chapéu sobre o jornal.

Tua mão
na minha garganta gasta
é como sede escondida depois da seca.
Nem espere que eu te dê a minha veia,
se já não sabes beber a minha sina,
se não deitas a alma em minha cama,
e nem te lembras do meu nome
depois da mesa.

Que sinal de fim de tempo esse
quando te demoras na esquina,
esperando um vento, um torvelinho,
uma onda em espiral
- redemoinho de saudade -
(foi assim que me disseste
quando abriste a porta
e jogaste a chave).

Nunca mais pé de vento
- foi apenas um temporal
que passou em minha vida
ao largo do caminho
sem saída.

Tua mão
na rede
nunca foi anzol.

(
Nic Cardeal, 16.01.2019 - em memória de todas as mulheres vítimas de feminicídio no Brasil, no mundo...)

(
 fotografia de Paulo Henrique Camargo Batista @ph_camargo_batista, com autorização, todos os direitos reservados)


BraziLírica Pereira Pereira

: A Traição das Metárofas

para Dalila Teles Veras

Re-Visitando

 

aqui

onde as coisas acontecem

agora estou

onde já estive

mesmo não estando

independente de onde esteja

me viaja pra Lisboa

pelas Ilhas da Madeira

e eu aqui de Madureira

me transporto em barco à vela

me transformo em aquarela

com poemas de Kandinski

mando um beijo pro Leminski

                e me refaço na Pessoa

 

Artur Gomes

leia mais no blog https://fulinaimagens.blogspot.com/

 


Natalense Coração

Uma feira de versos no Alecrim
Da minha alma tem cores e sabores
E sentindo os mais plácidos amores
Eu oferto os valores que há em mim.

A Cidade Alta do peito um festim
Mostra o Beco poeta com mil cores
Onde a voz dos boêmios e cantores
São poemas que sinto não ter fim.

Ao descer pra Ribeira do meu canto
Eu encontro Cascudo em um recanto
Escrevendo o Brasil nas tradições.

Natalense, meu verso corre pro mar
Pelo rio Potengi que faz pulsar
Um poeta que tem mil corações.

Gilmar Leite Ferreira


 

O AUTO-RETRATO

No retrato que me faço
— traço a traço —
às vezes me pinto nuvem,
às vezes me pinto árvore...
às vezes me pinto coisas
de que nem há mais lembrança...
ou coisas que não existem
mas que um dia existirão...

e , desta lida, em que busco
— pouco a pouco —
minha eterna semelhança,

no final, que restará?
Um desenho de criança...
Corrigido por um louco!

Mario Quintana


A VIDA E SUAS MEDIDAS

A morte, nesse tempo sombrio,
é uma advertência, uma clarividência,
a despeito da dor.
Porque depois do seu beijo fatal,
tudo que é sólido viva memória
e algum afeto disperso,
o universo que poderia ter sido,
o amor intensamente vivido,
a declaração que restou muda,
o silêncio de depois do sol.

A morte e sua ameaça surda,
o susto da foice no trigal do vizinho,
os animais da casa que ladraram
e, ameaçados, dentro da noite,
deixaram suas crias e seus ritos
que antecipavam, religiosas, manhãs.

Na margem do rio das almas,
Caronte, o barqueiro, mitológico,
metódico, exige a moeda
de sua passagem para a vertigem do longe.
Fica onde?

Contudo, a morte e seu ofício de finitude,
sua casa inundada de nada, nada, nada,
revela, involuntária, seu contraditório,
a vida e sua profusão de milagres, sons,
luzes, toques e a mutação das flores,
que desafiam a previsibilidade do fim
e se refazem em frutos.


PARAÍBA: RIO FEMININO

O rio Paraíba do Sul é fêmea
Só isso explica
aquele dorso sinuoso,
sensual
da mulher que desperta
do sono preguiçoso
da tarde,
enquanto lava
sua caudalosa
cabeleira
na bacia das águas
do Pontal.

 

Fernando Leite Fernandes

do livro Testamento de Vento


"Sou louco e tenho por memória
Uma longínqua e infiel lembrança
De qualquer dita transitória
Que sonhei ter quando criança.

Depois, malograda trajectória
Do meu destino sem esperança,
Perdi, na névoa da noite inglória
O saber e o ousar da aliança.

Só guardo como um anel pobre
Que a todo o herdado só faz rico
Um frio perdido que me cobre

Como um céu dossel de mendigo,
Na curva inútil em que fico
Da estrada certa que não sigo."

Fernando Pessoa


Herança Nipo-Brasileira nas Artes Visuais: Um diálogo transcultural.

A imigração japonesa no Brasil, iniciada em 1908, deixou um legado cultural rico e vibrante, presente nas artes visuais de forma expressiva. Artistas nipo-brasileiros, como Tomie Ohtake, Tikashi Fukushima e Manabu Mabe, incorporaram elementos da cultura oriental à estética ocidental, criando um diálogo transcultural único.

Essa herança se manifesta de diversas maneiras: na caligrafia japonesa presente nas obras de Tomie Ohtake, na reinterpretação da natureza típica da pintura japonesa em obras de Fukushima e na abstração geométrica com influência Zen de Mabe.

No entanto, se você viajar para Visconde de Mauá, no Rio de Janeiro, e visitar o Babel Cerâmica, vai se deparar com a obra de Dani Keiko. Ela não reinvidica pra si a tradição Nipo Brasileira, pois, ao construir sua obra livremente, acaba não dando qualquer discurso nesse sentido. Mas os traços pode ser sentidos no seu trabalho, a começar pela assinatura, onde ela faz questão de colocar os canjis afirmam sua herança ancestral.

A formação de Dani Keiko, além de vir da famosa "paciência búdica oriental", foi construída a partir de assimilações com Evelyn Kligerman, com quem aprendeu o grosso de sua construção. Portanto, juntando técnica e herança cultural, podemos dizer, sim, que Dani Keiko, é um tímido despertar da tradição nipo-brasileira das artes no Brasil e em particular, Visconde de Mauá, cidade onde vive, no Rio de Janeiro.

Para ter contato com a obra de Dani Keiko, basta baixar os e-Books gratuitos da poeta Roseana Murray, com quem Dani fez parceria em dois: "Poemas de encantados", que tem, também, a participação de Cristiano Mota Mendes. E o já icônico "Crianças e Bichos", que ganhou, inclusive, uma vernissage no Babel Cozinha, em Visconde de Mauá.

(Jidduks) – Jiddu K Saldanha


 Minha mãe deixava restos de comida numa varanda aberta, que dava para a rua. Juntavam-se dezenas de gatos, que comiam e dormiam por lá.


Há fotos que me mostram, ainda menino, dormindo e comendo junto com os gatos. Para mim, não havia muito a distinção entre ser bicho e ser pessoa. Acho que nós todos nos fizemos humanos por meio das relações e do contato com os animais.

Quando tinha dois anos e meio, “Mia” foi o nome que declarei que gostaria que me chamassem, em homenagem aos gatos. O mais curioso foi a aceitação dos meus pais. Eles acharam que eu já tinha a competência e o direito de me renomear. Hoje, se me chamarem de Antonio, eu não sei quem é.

Mia Couto
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Léa Roche, french artist / Beaux Arts school of Grenoble/sculpture (France).



a nitidez enfim...

estive tão oscilante!
um pêndulo que qualquer vento desloca
pelos ares.

uma bomba, eu diria,
que se deflagrada provocaria ondas de choque.

tentava provar que não sou
o que se diz, quando nem sei bem quem sou
e é inútil dizer.

se construo bem, algo?
— não sei.
o que digo?
— bom, já faz tanto tempo que creio
...edifiquei

...linhas paralelas
que convergem em um ponto de fuga
— fuga de mim,
pois sou...

onde a poesia vira mar.
onde o horizonte beija o sol.
onde termina a estrada? me pergunto...
— ao fim dela, há uma amendoeira
e hoje senti o cheiro de 'teus frutos maduros
(suspirei).

és belo, tão belo!

e és...
apenas és.
— basta ser, ok!?
é o que entendi.

fixo em você minha vista cansada
que arde e lacrimeja de tanto olhar essa perspectiva que esquadrinho.

não é por maldade! não.
uma poeta me disse sobre a Lua ser
um parêntese aberto
então pensei nas três Marias
... em sua experiência,
ela me questionou sob um céu, sob uma lua aberta...
— Haverá reticências?
pobre imatura diante dela que sou,
demorei a entender a questão.
após algumas horas estou aqui dizendo que
todo poeta
possui um tanto de loucura, e

é também porque sou,
e se não fosse
você inexistiria aos meus olhos
que nada sabe sobre a linearidade

e, você
sem meus olhos
continuaria a habitar teus mundos
tão, tão cheios de você
...que és.

respondo...
— por cada treze segundos, estou sustentando
o que disse outro poeta experiente em seu...
"TINTO SECO"
(ponto. e ponto. ponto.)

Rosa Ataíde

para Líria , Lau
 e para o Sr Misterioso que não arrisco dizer.
Imagem: fragata no céu de Niterói 


Teu Corpo de Terra e Água

"Teu corpo de terra e água
Onde a quilha do meu barco
Onde a relha do arado
Abrem rotas e caminho

Teu ventre de seivas brancas
Tuas rosas paralelas
Tuas colunas teu centro
Teu fogo de verde pinho

Tua boca verdadeira
Teu destino minha alma
Tua balança de prata
Teus olhos de mel e vinho

Bem que o mundo não seria
Se o nosso amor lhe faltasse
Mas as manhãs que não temos
São nossos lençóis de linho"

JOSÉ SARAMAGO 


em lugar algum


do burgo - embargo
o rubro - amargo

um bando de bardos
abandonados

:

( rasgar o tecido dos olhos
a pele das maçãs

acumular pútridos detritos
embaixo das unhas

escurecer os poemas
o cerne da carne

promover incêndios
de incertos indícios )

:

na feliz - cidade
do calmo - conforto

apenas analgésicos
são amados

:

( cobiçar o infinito
no tenso rugido
dos tambores

ou

colher abismos
na pele puída
do corpo - cansaço )

:

um burgo de bardos
embargados

de amargo - rubro
abandono


garbo gomes

UVA.PR.BR

Ilustração:
Mulher com boina e vestido xadrez
Pablo Picasso
( 1937 ) 


MÁXIMO RESPEITO

 

vagou por aí

pelas ruas dessa cidade

gerado no morro

em periferia qualquer

um ser entidade

soma de tantas

nobre senhor

que pra dentro sorria

preferia os cantos

e parcas palavras

o olhar era vago

centrado no todo

ser lume

com brilho de estrela

clareando encruzilhadas

com sua conversa mansa

saciando a fome de pobres e de prosas

odiando a poesia com amor e revolta

insolente nem homem nem mulher

daqui, de Angola ou Jamaica

cruzou todos os becos e botecos

serviu banquetes de palavras

lutou ao lado de santos e demônios

e combateu cada um deles

honrou a cor de sua pele

resgatou os ancestrais

e mais

esparramou sementes

na maloca e no terreiro

e até no planalto lá do centro

do nada ou das mentes

partiu sem adeus

no mais completo silêncio

repetindo apenas

não passo de um maloqueiro

se é assim

seja como queira

mas sua cuíca fica

e chora

 

Marcelo Brettas

 

(Luis Mendes retratado na pintura de meu mano Fernando Brettas, feita no final de 2023)




 Com Os Dentes Cravados Na Memória

 

A Mocidade Independente de Padre Olivácio – A Escola de Samba Oculta No Inconsciente Coletivo, nasceu em dezemvro de 1990, durante uma viagem em que cia de Guiomar Valdez, levamos uma turma de estudantes da então ETFC(IFF), a Ouro Preto-MG, como premiação por terem vencidos a Gincana Cultural desenvolvida durante o ano, pelo Grêmio Estudantil Nilo Peçanha. Lá conheci Gigi Mocidade – A Rainha da Bateria, com quem vivi até 1996.

 

A Igreja Universal do Reino de Zeus, criei em 2002 durante a 1ª Bienal do Livro de Campos dos Goytacazes-RJ, que foi realizada nas dependências do Ginásio de Esportes do então CEFET-Campos, onde na ocasião lancei o livro BraziLírica Pereira : A Traição das Metáforas.

O grande objetivo da IURZ é homenagear deuses deusas da África e Grécia para de alguma forma descobrir de onde vem as nossas ancestralidades. De alguma forma e em alguns momentos mitologia grega e africana se misturam e viajando metaforicamente nessas realidades reinventadas vim desaguar no Vampiro Goytacá canibal Tupiniquim.

 

Artur Gomes

https://arturgumes.blogspot.com/




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