sexta-feira, 8 de abril de 2022

antropofagicamente

 


Jura Secreta 46 

bolero blue 

beber desse conhac em tua boca 
para matar a febre

 nas entranhas entre/dentes 

indecente é uma forma que te como 
bebo ou calo 
e se não falo quando quero 
na balada ou no bolero 
não é por falta de desejo 

é que a fome desse beijo 
furta outra qualquer palavra presa 
como caça indefesa 
dentro da carne que não sai 

 

Artur Gomes

Do livro Juras Secretas

Editora Penalux – 2018

www.secretasjuras.blogspot.com




Canção amiga

 

Eu preparo uma canção

em que minha mãe se reconheça,

todas as mães se reconheçam,

e que fale como dois olhos.

Caminho por uma rua

que passa em muitos países.

Se não me vêem, eu vejo

e saúdo velhos amigos.

 

Eu distribuo um segredo

como quem ama ou sorri.

no jeito mais natural

dois caminhos se procuram.

Minha vida, nossas vidas

formam um só diamante.

Aprendi novas palavras

E tornei outras mais belas.

Eu  preparo uma canção

que faça acordar os homens

e adormecer as crianças.

 

Carlos Drummond de Andrade 


Cântico dos Cânticos  Para Flauta e Violão

 

oferta:

 

saibam quantos este meus versos virem

que te amo

do amor maior

que possível for

 

canção e calendário

 

sol de montanhas

sol esquivo de montanhas

felicidade

teu nome é

Maria Antonieta D´Alkmin

 

no fundo do poço

no cimo do monte

no poço sem fundo

na ponte quebrada

no rego da fonte

na ponta da lança

no monte profundo

nevada

entre os crimes contra mim

Maria Antonieta d´Alkmin

 

felicidade forjada nas trevas

entre os crimes contra mim

Maria Antonieta d´Alkmin

 

não quero mais as moreninhas de Macedo

não quero mais as namoradas

do senhor poeta

Alberto d´Oliveira

quero você

não quero mais

crucificadas em meus cabelos

quero você

 

não quero mais

a inglesa Elena

não quero mais

a irmã na Nena

não quero mais

a bela Elena

Anabela

Ana Bolena

quero você

 

toma conta do céu

toma conta da terra

toma conta do mar

toma conta de mim

Maria Antonieta d´Alkmin

 

e se ele vier

defenderei

e se ela vier

defenderei

e se eles vierem

defenderei

e se elas vieram todas

 

numa guirlanda de flechas

defenderei

defenderei

defenderei

 

cais da minha vida

partida sete vezes

cais da minha vida quebrada

nas prisões

suada nas ruas

modelada

na aurora indecisa dos hospitais

 

bonançosa bonança

 

convite

 

escuta este verso

que eu fiz para você

para que todos saibam

que eu quero você

 

imemorial

 

gesto de pudor de minha mãe

estrela de abas abertas

não sei quando começou em mim

em que idade

em que eternidade

em que revolução solar

do claustro materno

eu te trazia no colo

Maria Antonieta d´Alkmin

 

te levei solitário

nos ergástulos vigilantes da ordem intraduzível

nos trens de subúrbio

nas casas alugadas

nos quartos pobres

e nas fugas

 

cais da minha vida errada

certeza de corsário

porto esperado

coral caído

do oceano

nas mãos vazias

das plantas fumegantes

 

mulher vinda da china

para mim

vestida de suplícios

nos duros dorsos da amargura

para mim

Maria Antonieta d´Alkmin

 

teus gestos saiam dos borralhos incompreendidos

que tua boca ansiosa

de criança repetia

sem saber

teus passos subiam

das barrocas desesperadas

do desamor

trazia nas mãos

alguns livros de estudante

e os olhos finais da minha mãe

 

alerta

 

lá vem o lança-chamas

pega a garrafa de gasolina

atira

eles querem matar todo amor

corromper o pólo

estancar a sede que eu tenho de outro ser

vem de flanco, de lado

por cima, por trás

atira

atira

resiste

defende

de pé

de pé

de pé

o futuro será de toda humanidade

 

fabulário familiar

 

se eu perdesse a vida

no mar

não podia hoje

te ofertar

os nevoeiros, as forjas, os Baependis

 

acalanto

 

acuado pelos moços de forcado

flibusteiro

te descobri

muitas vezes pensei que a felicidade sentasse à minha mesa

que me fosse dada no locutório dos confessionários

na hipnose das bestas feras

no salto-mortal das rodas gigantes

ela vinha intacta, silenciosa

nas bandas de música

que te anunciaram para mim

Maria Antonieta d´Alkmin

 

quando a luta sangrava

nas feridas que sangrei

com alfinete na cabeça te deixei

adormecida

no bosque

te embalei

agora te acordei

 

relógio

 

as coisas são

as coisas vêm

as coisas vão

as coisas

vão e vem

não em vão

as horas

vão e vem

não em vão

 

compromisso

 

comprarei

o pincel

do Douanier

para te pintar

levo

pro nosso lar

o piano periquito

e o reader ´s digest

para não tremer

quando  morrer

e te deixar

eu quero nunca te deixar

quero ficar

preso ao teu amanhecer

 

dote

 

te ensinarei

o segredo onomatopaico do mundo

te apresentarei

Thomas Morus

Federico Garcia Lorca

a sombra dos enforcados

o sangue dos fuzilados

na calçada das cidades inacessíveis

te mostrarei meus cartões-postais

o velho e a criança dos jardins públicos

o tutu de dançarina sobre um táxi

escapados ambos da batalha do Marne

o jacaré andarilho

a amadora de suicídios

a noiva mascarada

a tonta do teatro antigo

a metade da Sulamita

a que o palhaço carregou no carnaval

enfim, as dezessete luas mecânicas

que precederam teu arrebol

 

marcha

 

todos virão para o teu cortejo nupcial

a princesa Patoreba

coroada de foguetes

a senhora Dona Sancha

que todos querem ver

o tangolomango

e seus mortos mastigados

nas laboriosas noites processionais

 

todos comparecerão

o camarada barbudo

o bobo-alegre

o salvado de diversos pavorosos incêndios

o frade mau

o corretor de cemitérios

e onde esciver

o Pinta-Brava

meu irmão

Tatá, Dudu, Popó,  Sici, Lelé

 

não quero sombra de cera

nem noite branca de reza

quero o velório pretoriano

de  Sócrates

não o bestiário

de Casanova

não quero tochas

não quero vê-las

Tatá, Dudu,  Popó, Sici, Lelé

 

o tio da América

a igreja da Aparecida

o duomo de Milão

o trem, a canoa, o avião

Tudo darei às mesas anatômicas

do mastigador de entranhas

himeneu

 

para teu corpo

construirei o dossel

abrirei a porta submissa

ligarei o rádio

amassarei o pão

 

black-out

 

girafas tripulantes

em pára-quedas

a mão do jaburu

roda de mulher que chora

o leão dá trezentos mil rugidos

por minuto

o tigre não não é mais fera

nem borboletas

nem açucenas

a carne apenas

das anêmonas

 

na espingarda

do peixe espada

trasncontinental ictiossauro

lambe o mar

voa, revoa

a moça encastra

enforca, empala

à espera eterna

do Natal

 

desventra o ventre donde nasceu

a neutra equipe

dos sem luar

no fundo, fundo

do fundo do mar

da podridão

as sereias

anunciarão as searas

 

mea culpa, lear

 

na hora do fantasma

entre corujas

Jocasta soluçou

o palácio de fósforo

múltiplas janelas

desmaiou

 

- por quê calaste os sinos?

meu filho filho meu

- dei, dei, dei

- onde puseste os reinos e as vitórias?

que estranha serenidade prometias?

- era ururpação,  paguei

- passaste fome?

- muitas vezes comi as marés de meu cérebro

 

encerramento e gran-finale

 

nada te sucederá

porque inerme deste o teu afeto

no soco do coração

te levarei

nas quatro sacadas fechadas

do coração

 

deixei de ser o desmemoriado das idades de ouro

o mago anterior a toda cronologia

o refém  de Deus

o poeta vestido de folhagem

de cocos e de crânios

Alba

Alfaia

Rosa dos Alkmin

dia e noite do meu peito que farfalha

 

a teu lado

terei o mapa-múndi

 

em minhas mãos infantes

quero colher

o fruto crédulo das semeaduras

darei o mundo

a um velho de juba

a seu procurador mongol

e a um amigo meu

com quem pretenderam

encerrar o sol

 

viveremos

o corsário e o porto

eu para você

você para mim

Maria Antonieta D´Alkmin

 

para lá da vida imediata

das tripulações de trincheira

que hoje comigo

com meus amigos redivivos

escutam os assombrados

brados de vitória

de Stalingrado

 

Oswald de Andrade



Fulinaima MultiProjetos

www.centrodeartefulinaima.blogspot.com

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