quarta-feira, 13 de julho de 2022

Os Livros Contra O Mal


José Eduardo Agualusa

O Globo, 08.07.2022

 

     Livros contra o mal

 

Jair Bolsonaro revelou mais uma vez a sua perversa bibliofobia — ele gostaria de transformar todas as bibliotecas em clubes de tiro

 Há perto de 30 anos, morando em Lisboa, tive como vizinho um jovem neonazi. Era um sujeito baixo, marombado, de cabeça raspada e olhos apáticos. Regressava à casa muitas vezes após a meia-noite, e logo se anunciava, colocando as suas bandas preferidas de death metal no volume mais alto. Eu, que morava no apartamento contíguo, sofria com o ruído. Uma noite, louco de sono, desesperado, bati à porta dele. Mal o rapaz abriu, vi, presa numa das paredes, uma bandeira nazista. Ele sorriu, percebendo o meu horror:

 — Aquilo o incomoda?!

 — Incomoda. Mas o que me incomoda mais é o ruído…

 — Problema seu — gritou o jovem, fechando a porta.

 Uma fúria ancestral tomou conta de mim. Chutei a porta com tanta força que o trinco saltou, em pedaços. O rapaz encarou-me, pálido de espanto. Eu, que estava tão espantado quanto ele com a minha explosão de brutalidade, comecei logo a desfazer-me em desculpas. Urrando palavrões, o jovem agarrou num taco de beisebol e atacou-me. Recuei, protegendo a cabeça com os braços. Entrei em casa e ele seguiu-me, desferindo fortes pauladas. Subitamente, estacou, olhando assustado para alguma coisa, atrás de mim, deu-me as costas e fugiu. Voltei-me, esperando encontrar algum fantasma protetor, brandindo uma lança incandescente, mas atrás de mim vi apenas livros — uma estante cheia de livros de poesia.

 Fui ao hospital, tratar dos ferimentos nos braços, e depois passei por um posto policial para denunciar a agressão. Largos meses após o episódio recebi uma convocatória das autoridades. Por essa altura eu já nem vivia mais em Lisboa. Uma policial muito simpática, muito atenciosa, disse-me que o meu antigo vizinho estivera anos internado numa clínica psiquiátrica. Na época em que me agrediu trabalhava numa morgue, lavando cadáveres. De repente, a policial mudou de assunto:

 — Você tem muitos livros em casa?

 Surpreso, confirmei:

 — Ele diz que se assustou ao ver tantos livros…

 Retirei a queixa. Voltei a lembrar-me do meu jovem vizinho neonazi ao ler o comentário de Bolsonaro, expressando o receio de que, caso vença as eleições, Lula transformará os clubes de tiro em bibliotecas. Jair Bolsonaro revelou mais uma vez a sua perversa bibliofobia — ele gostaria de transformar todas as bibliotecas em clubes de tiro. Esta bizarra patologia explica a recente atribuição da medalha da Ordem do Mérito do Livro, atribuída pela Biblioteca Nacional, ao deputado Daniel Silveira e a outros notórios bibliófobos. Não há melhor forma de destruir uma instituição do que troçando dela.

 Lembrei-me também das eleições de 2018, quando os eleitores de Fernando Haddad compareceram nas urnas com livros debaixo dos braços. Na época, esse protesto já tinha a ver com a promessa de Bolsonaro de flexibilizar a venda e o porte de armas. Infelizmente, não deu certo. Ainda assim, continuo a acreditar que os livros constituem o melhor exorcismo contra o totalitarismo e todos os seus agentes.

 Talvez os eleitores de Haddad tenham escolhido os livros errados. Em vez de ensaios políticos ou de romances distópicos — “Como as democracias morrem” e “1984” foram os títulos mais utilizados —, deviam ter levado grossos volumes de poesia. A poesia, a boa poesia, é a estaca de madeira no coração da maldade.


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