José Eduardo Agualusa
O Globo, 08.07.2022
Livros contra o mal
Jair Bolsonaro revelou mais uma vez a sua perversa
bibliofobia — ele gostaria de transformar todas as bibliotecas em clubes de
tiro
Há perto de 30 anos, morando em Lisboa, tive como vizinho um
jovem neonazi. Era um sujeito baixo, marombado, de cabeça raspada e olhos
apáticos. Regressava à casa muitas vezes após a meia-noite, e logo se
anunciava, colocando as suas bandas preferidas de death metal no volume mais
alto. Eu, que morava no apartamento contíguo, sofria com o ruído. Uma noite,
louco de sono, desesperado, bati à porta dele. Mal o rapaz abriu, vi, presa
numa das paredes, uma bandeira nazista. Ele sorriu, percebendo o meu horror:
— Aquilo o incomoda?!
— Incomoda. Mas o que me incomoda mais é o ruído…
— Problema seu — gritou o jovem, fechando a porta.
Uma fúria ancestral tomou conta de mim. Chutei a porta com
tanta força que o trinco saltou, em pedaços. O rapaz encarou-me, pálido de
espanto. Eu, que estava tão espantado quanto ele com a minha explosão de
brutalidade, comecei logo a desfazer-me em desculpas. Urrando palavrões, o
jovem agarrou num taco de beisebol e atacou-me. Recuei, protegendo a cabeça com
os braços. Entrei em casa e ele seguiu-me, desferindo fortes pauladas.
Subitamente, estacou, olhando assustado para alguma coisa, atrás de mim, deu-me
as costas e fugiu. Voltei-me, esperando encontrar algum fantasma protetor,
brandindo uma lança incandescente, mas atrás de mim vi apenas livros — uma
estante cheia de livros de poesia.
Fui ao hospital, tratar dos ferimentos nos braços, e depois
passei por um posto policial para denunciar a agressão. Largos meses após o
episódio recebi uma convocatória das autoridades. Por essa altura eu já nem
vivia mais em Lisboa. Uma policial muito simpática, muito atenciosa, disse-me
que o meu antigo vizinho estivera anos internado numa clínica psiquiátrica. Na
época em que me agrediu trabalhava numa morgue, lavando cadáveres. De repente,
a policial mudou de assunto:
— Você tem muitos livros em casa?
Surpreso, confirmei:
— Ele diz que se assustou ao ver tantos livros…
Retirei a queixa. Voltei a lembrar-me do meu jovem vizinho
neonazi ao ler o comentário de Bolsonaro, expressando o receio de que, caso
vença as eleições, Lula transformará os clubes de tiro em bibliotecas. Jair
Bolsonaro revelou mais uma vez a sua perversa bibliofobia — ele gostaria de
transformar todas as bibliotecas em clubes de tiro. Esta bizarra patologia
explica a recente atribuição da medalha da Ordem do Mérito do Livro,
atribuída pela Biblioteca Nacional, ao deputado Daniel Silveira e a outros
notórios bibliófobos. Não há melhor forma de destruir uma instituição do que
troçando dela.
Lembrei-me também das eleições de 2018, quando os eleitores
de Fernando Haddad compareceram nas urnas com livros debaixo dos braços. Na
época, esse protesto já tinha a ver com a promessa de Bolsonaro de flexibilizar
a venda e o porte de armas. Infelizmente, não deu certo. Ainda assim, continuo a
acreditar que os livros constituem o melhor exorcismo contra o totalitarismo e
todos os seus agentes.
Talvez os eleitores de Haddad tenham escolhido os livros
errados. Em vez de ensaios políticos ou de romances distópicos — “Como as
democracias morrem” e “1984” foram os títulos mais utilizados —, deviam ter
levado grossos volumes de poesia. A poesia, a boa poesia, é a estaca de madeira
no coração da maldade.
Nenhum comentário:
Postar um comentário