bandeira
nacional
com palavras
sons
imagens
e versos
inauguro o monumento
no planalto central
araçá azul
domingo no parque
vapor barato
mal secreto
pérola negra
construção
cabeça
poema concreto
arte
poesia
teatro
cinema
pós poema
terra em transe
tropicália
grande sertão
veredas
vidas secas
memórias do cárcere
parangolés
hélio oiticica
artur bispo do rosário
bacurau
seja herói seja marginal
Artur Gomes
O Poeta Enquanto Coisa
Editora Penalux – 2020
www.secretasjuras.blogspot.com
Só de raiva, hoje farei poesia
Só de raiva, hoje não admitirei a iniquidade,
não suportarei a impunidade, não
aguentarei a estupidez
Só por ódio (aos imbecis crônicos),
hoje cantarei os mortos, os desassistidos,
os desabrigados, os crucificados
hoje cantarei as mulheres baleadas,
as desassistidas, as desabrigadas,
as crucificadas,
quase todas quase que todas,
enterradas ou não,
quase todas quase que todas,
prestes a serem esquecidas
Mas, não hoje
Pelo menos, não neste poema,
pois hoje, só de raiva, gritarei,
estou gritando,
farei poesia
Hoje, de pura raiva, por desespero,
cantarei o amar,
com todas suas letras, contornos e gêneros,
e de tal forma e de tanta potência que, assim,
também farei desesperar os idiotas,
os imbecis crônicos empedernidos
que babam seu ódio visgoso e
não suportam, sequer concebem
o ato de simples amar
e, portanto, ainda com mais razão,
com muito mais raiva, cantarei o amor,
minha querida, minha amada,
cantarei o amor, hoje seremos amor,
hoje seremos, faremos, poesia.
-
HOJE FAREI POESIA
Claudinei 'Urso' Vieira
para Ingrid Morandian
O açúcar
O branco açúcar que adoçará meu café
nesta manhã de Ipanema
não foi produzido por mim
nem surgiu dentro do açucareiro por milagre.
Vejo-o puro
e afável ao paladar
como beijo de moça, água
na pele, flor
que se dissolve na boca. Mas este açúcar
não foi feito por mim.
Este açúcar veio
da mercearia da esquina e tampouco o fez o
Oliveira, dono da mercearia.
Este açúcar veio
de uma usina de açúcar em Pernambuco
ou no Estado do Rio
e tampouco o fez o dono da usina.
Este açúcar era cana
e veio dos canaviais extensos
que não nascem por acaso
no regaço do vale.
Em lugares distantes, onde não há hospital
nem escola,
homens que não sabem ler e morrem de fome
aos 27 anos
plantaram e colheram a cana
que viraria açúcar.
Em usinas escuras,
homens de vida amarga
e dura
produziram este açúcar
branco e puro
com que adoço meu café esta manhã em Ipanema.
Ferreira Gullar
Mostra Visual
de Poesia Brasileira
Poesia em Movimento – Múltiplas Poéticas – a partir de Maio no Museu
Histórico de Campos – lei mais no blog
www.fulinaimacentrodearte.blogspot.com
bacurau é baKralho
quem sabe ela me leve
pro terreiro
bater tambor na capoeira
nas noites de sexta-feira
quem sabe ela me leve
para alguma encruzilhada
beijar a boca de Iansã
as quatro e dez da madrugada
Pastor de Andrade
www.arturkabrunco.blogspot.com
POEMA DE
HOJE,
13/09/2019
Eu espremia as palavras
Até seu sumo suco sair saliente
Eu apertava as palavras
Até atingir um grito surpreendente
Eu torturava as palavras
Até obter uma confissão inexistente
Hoje eu acaricio as palavras
E elas me agradam e me tratam feito gente
Augusto Garuzzi
Love song
quando você me aperta o coração
cortando da gaivota
o silêncio
da solidão, o frio
aprendo aos poucos os acordes de "La Vie em
Rose"
te dou metade d palavra amor
e espero do caminho,
a outra metade
Natália Agra
do livro De Repente Chuva
Corsário Satã - 2017
da cabeça que
pensa colorido
( edu planchêz )
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no triângulo das bermudas
dos que pensam em água
o tempo todo por ter sido parido por um peixe
com as costas das mãos afasto o sol
e beijo o céu assim como brada jimi hendrix
feliz por andar nos cantos das conchas
das agudas pontas das estrelas
para compor com as sombras
outras sombras
e toda a sequência de imagens
que perambulam pelas visões comuns a todos
se partem nas pedras, nas células da pele
e a nossa idade é outra,
disso meus irmãos e irmãs sabem,
temos corpos que se multiplicam
pelas multiplicações
ouvia sim, o pintassilgo, o curiango
o urutau chora-lua, ibijaú-guaçu,
mãe-da-lua, manda-lua, urutago,
pássaro de cabeça chata
e larga com grandes olhos,
boca larga e bico pequeno
com a ponta adunca
no triângulo
no losângulo
no quadrado
por todo o sistema hidráulico
da cabeça,
da cabeça que pensa colorido
de semana em semana
sem ares de outra resa
ainda acabaremos em cana
Ademir Assunção
PERDA (LÍNGUA)
A boca saliva alívio e, viva, a sílaba dá início à
livra do cicio a boca abre a língua que não derrapa e depara em lenga-lenga,
bota o marco-zero do lero-lero bifurca o caminho que estira a lira e bole a
bile suga cega a saga e segue descosturando culturas dando tilt em kilt
arremesso de maços cigarros em pizzas de alienígenas em passos passa a língua
cruza anticrista a casca grossa da fossa o gerânio o arsênio os domínios dos
demônios os anjos marmanjos as tulipas rezando evitar pântanos nos tímpanos e
estrias nas estrelas.
Fabiano Calixto
no livro Nominata Morfina
Corsário Satã - 2014
Fascibook
a treta vira
texto
o texto vira
textão
o textão sai
do contexto
e vira ovação
a ovação vira fan
page - e toda fan
page tem seus fan
boys: muitos deles
formam rebanho
e te lincharão depois
todos sabem que a fan
page é a comunidade-
que-resta, a comunidade-
que-vem, aliás, anota aí,
pateta: nessa patota, eu sou
minguém (você também).
fica decidido, ainda que simplório,
"ninguém deve linchar
ninguém" será o nosso
imperativo categórico
pois
o mundo é uma grande
Igreja onde os infiéis
serão queimados ao vivo:
ser obrigado a dizer tudo
de si é a própria Inquisição
- e o último alívio.
Murilo Duarte Costa Corrêa
na Revista Meteoro
Corsário Satã - 2019
Monóculo
tenho um venho a dizer:
o corpo vestido em popeline
quase que em vergonha
subir o vestido pelos cotovelos
sorriso franzido abria-se entre as arestas das mãos
bonita de azul
renda nas pernas sua mais discreta agonia
um original de estrelas
se abrindo
vi o fusca 73
ainda mais azul
trazer um rio
dançando a esquina
onde carros, pessoas
esperam, correm
seguem em frente
tenho um vento soprando nos olhos
nessa esquina em que muito esperei
assento praça na paciência
deixo-me inerte onde mais tive sorte
congelado em preto e branco
sorriso fosco
a vi passar em popeline
o retorno do azul do vento
Natália Agra
no livro De Repente A Chuva
Corsário Satã - 2017
OUTUBRO
APROXIMANDO-SE
para a beleza de Sonia Braga
e a coragem do Coronel CORTEZ
Olhar tão singular e plural.
Ultimatum pela miséria das filosofias.
Temeridades revolucionárias.
Urgências do cotidiano faminto.
Brindar e brincar sem medo do
SER e NADA.
Roteiros abertos e reinventados pelo
BACURAU.
O projeto e projétil de ARTEVIDA
atrevidamente para W. J. SOLHA
e leitores em transe.
Jomard Munis de Britto
ETERNIDADE
A poesia é avis rara
num mundo raso.
A dúvida faz parte
de cada bago do poema.
O poeta trucida
o coloquial e seus oficiais.
Se o ofício do dia
é um batismo de sangue,
ele não teme as flores
dementes.
Se a lógica dos abutres
aponta para o óbvio,
o poeta agarra-se
ao mito que nunca morre.
Tito Leite II
Maloca
Minha mente é uma maloca
Uma área determinada
Uma terra demarcada
Pela indignação
Batido chão
Fio de alta tensão
Emaranhado
Gato
Esgoto a céu aberto
Ralo
Minha mente é uma maloca
Samba
Rock
Rap
Poesia
Cartolas Criolos e Mauris
Agredindo sua arrogância
Animando minha crença
No amanhã dessa criança
Que vive por aqui
Minha mente é uma maloca
De portas abertas pro mundo
E janelas com paisagens diversas
Que podem confundir sua razão
Minha mente é uma maloca
Vítima da má distribuição
De sonhos
E realização
É um portal
É um sarau
Onde a massa grita
Implora aflita
Por um diazepan
Minha mente é uma maloca
Um enigma
Uma contradição
O mundo inteiro
E a solidão
Quando manifesta
Rasura sua imaginação
Me fala
Me cala
Mas nunca consente
Uma maloca cheia de cor
E de gente
Indigente
Minha mente
Malu Pera
Mais Que Nunca!
A bala da moda é a perdida na balada nossa de
cada dia.
Cidade partida sempre se mostra, roça as vidas:
mil Rocinhas.
Não se queira que se dane o Rio de sangue e
maravilhas.
Rio explode nas retinas e até pode virar minas.
Mais que nunca, cantar forte coletiva utopia.
E que Rio de recortes seja só em geografia.
Arte é campo sem divisas, vê além do que se
expia.
Qualquer canto será grande sob o céu da poesia.
Delayne
Brasil
CANTO
Minha amada
entrou comigo no bosque
e lá ficamos andando
entre os pequenos animais.
Nossas mãos estavam juntas
e assim ouvíamos o canto
dos pássaros que haviam
imigrado no inverno.
Eram belos.
Suas penas traziam cores raras
nunca vistas em nenhum outro bosque.
E lá, eternamente, ficamos ouvindo
os nossos corações e os cantos
dos pássaros que fugiam do inverno.
Celso de
Alencar
Vícios e
Virtudes
Nem pisco
em matéria de santo
fico com o Papa Francisco
Não sou fraco
em matéria de balbúrdia
estou sempre com Baco
Em combate
não dou adeus
sigo permanente
na trincheira com Zeus.
Sady Bianchin
ovelhas adestradas por favor
tentem se desgarrar desse torpor
para se libertarem das garras do pastor
Federico Baudelaire
anjo torto
eu sou o que invoca
o que provoca
e incorpora
desconcentra
desconforta
desconstrói
e desconcerta
eu sou o que interpreta
representa
o que inventa
e desafora
o anjo torto
graças a zeus
a pedra e ao machado de xangô
a capitã do mato
a caipora
me xinga de poeta enganador
mal sabe ela
que eu sou da reza
e que o homem que se preza
nunca se escraviza
com chicote de feitor
Artur
Gomes
O Poeta Enquanto Coisa
www.secretasjuras.blogspot.com
|
||GUÖMUNDSDÒTTIR||
na praia entre as pedras
Guömundsdòttir canta um canto triste e visceral
sua voz singular de timbres incomuns
textura vocal limpa e cristalina
voz de peito médio-grave cavernosa
linguagem própria
Guömundsdòttir voz e visual
seus parangolés multicolores esvoaçantes ao vento
sua expressão corporal
seu magnetismo no olhar
de seu corpo emana a música das esferas
e no horizonte distante gaivotas sobrevoam o farol
lua da manhã clara como o céu
mar denso
mar aberto
mar tenso
mar desperto
mar imenso
mar imerso
mar intenso
mar deserto
ondas chocam-se contra os rochedos
mmmmmmmmmm
aaaaaaaaaaaaaaaaaa
rrrrrrrrrrrrrrrrrrrrr
um grito no escuro é luz nas trevas
Guömundsdòttir não cabe em si
por isso se lacera e se
desdobra em um duplo de Guömundsdòttir
como um espelho do sol a refletir
nas águas em círculos concêntricos a reverberar
numa divisão tripartite de Guömundsdòttir
uma profusão de vozes sobrepostas como o zoar
de uma nuvem de insetos
a domar e a dominar mentes humanas
nossas almas mundanas e capturá-las
para o interior de si mesmas
imerso no alagado
somos conduzidos pelas mãos de Guömundsdòttir
da lama da terra rachada
ao buraco da cratera da gruta
no centro do túnel que se abre
no coração das trevas e somos
deixados sós ali
cravados
petrificados
largados lá
de um lado o lado sombrio
do lado oposto o lado iluminado
o lado iluminado nos chama e pensamos
em correr até ele o mais rápido possível
o mais rápido que pudermos
mas não
no lado sombrio uma horda invisível nos observa
qualquer
passo em falso
respiração opressa
movimento brusco
pulsação
por menor que seja
é um belo motivo para o ataque
por isso não nos movemos
não não nos atrevemos
estáticos e elétricos
hipnotizados pelo canto gutural de Guömundsdòttir
Guömundsdòttir
some e reaparece
some e desaparece
pisca na nossa frente
grita e silencia por SOS
chama e se distancia
nos envolve nos abraça
nos acolhe
nos toca depois foge
se encolhe e explode
a gruta é o canal da laringe de Guömundsdòttir
escorregamos como num tobogã língua adentro
que nos conduz da sua voz direto ao seu coração
e de lá até o útero
origem do homem
origem do fruto
origem do mundo
e então renascemos
revigorados
envoltos na placenta do fundo do mar
rochas flutuantes como águas vivas medusas
ilhas flutuantes em formação
Guömundsdòttir
vulva voadora vulva sonora
que vibra e nos olha
G I G A N T E
que gesticula e ejacula vida verdejante
você me lava feito um vulcão
Poema inspirado pela visita à exposição Björk
Digital no MIS – Museu da Imagem e do Som no dia 03.08.2019.
Andri Carvão
no dia que viu o coronel ustra pela primeira vez
- sem saber quem era ainda -
josé louzeiro achou estranho
que tenha passado a noite inteira vomitando
BOLSONARO MORO DAMARES DÓRIA MOURÃO
DAMORO MOURANARO BOLSOMARES DOURÃO
BOLSOMORO DORINARO MOURARES DAMOURÃO DANARO
MOMARES MORÓRIA BOLSOMOURÃO DADÓRIA BOLSÓRIA DAMONARO MOMOURÃO FARINHA DO MESMO
ASCO
A poesia é
A poesia não é
A poesia é e não é
A poesia quase
A poesia talvez
A poesia nem sei
A poesia quem dera
A poesia quem disse
A poesia nem seu souza
A poesia é contra
Se a poesia é contra
Quem há de ser a favor da poesia.
Quem?
Celso Borges, poeta, jornalista e letrista,
parceiro de Zeca Baleiro, Chico César e Criolina entre outros. Tem 11 livros
publicados, entre eles NRA (1996), XXI (2000), Música (2006) e Belle Époque
(2010). Desenvolve projetos de poesia no palco desde 2005: Poesia Dub, com
Otávio Rodrigues; A Posição da Poesia é Oposição, com Christian Portela e Luiz
Claudio Farias; e Sarau Cerol, com Beto Ehongue. Tem poemas publicados em
revistas de literatura, entre elas Coyote, Oroboro e Poesia Sempre. Foi curador
da Feira do Livro de São Luís (FeliS) em 2013 e 2014.
Calçadão da
zona central
O homem na cadeira de rodas segura o saco de mijo
com uma das mãos,
com a outra
ergue a receita amarela de sempre
repete a cantilena pesada
feito o dia nublado e quente.
Dó piedade tédio asco indiferença:
é o praxe da maioria,
mas até mesmo “foda-se o homem com saco de mijo
na cadeira de rodas”
poderá ser dito ou pensado,
a depender do dia
e de quem passa.
Logo ali, sentado no chão,
o velho engraçado sem pernas
conta alto piadas indecentes.
Horrorizada,
a beata ao lado sobe a voz estridente
que inferniza em nome de Deus.
Pouco à frente, os trigêmeos cegos
cantam e tocam baião parecendo Rock.
E duas vezes ao dia passo eu,
com o coração a pedir esmolas.
*
cidade maravilhosa coração do meu brasil
o cara de ipanema/leblon/gávea
sacaneia o cara de copacabana/leme
que sacaneia o cara de
botafogo/flamengo/laranjeiras
que sacaneia o cara da tijuca/andaraí/grajaú
que sacaneia o cara do
engenho novo/lins/meier/cachambi/engenho de dentro
que sacaneia o cara de piedade/encantado/quintino/
que sacaneia o cara de
madureira/cascadura/marechal/
que sacaneia o cara da pavuna/
que só tem o cara da baixada pra sacanear.
ah, e tem o novo rico da barra que sacaneia o cara
de jacarepaguá
(ao pé da geografia
dorme esticada e cínica
a sombra da discriminação).
*
Petrópolis
A mudez do piano na sala
é música perfeita para esta manhã nova de sábado:
o silêncio da rua
só perde para o dos quartos.
O frio dá preguiça nos relógios
e entre sete e oito horas
podem se passar dois séculos
(para frente ou para trás).
Com pressa,
há somente o nevoeiro em fuga
descobrindo o sol e azulando o céu
como se fosse colcha grossa
que mãe vai tirando
quando não queremos acordar.
Olho pela vidraça gelada
não arrisco sequer uma fresta de janela.
“É hora de fazer café”!,
me chama da cozinha
o grito agudo da chaleira,
enquanto lá fora
passam em seus dias mais felizes
os mortos de nossa infância.
*
André Giusti – Do livro De Tanto Bater com o Osso, a Dor Vira Anestesia – Em breve
pela Editora Patuá.
poema para marielle franco
rascunho na noite de sua brutal execução
certeiros, os projéteis
da janela
da mira
do gatilho
atingem o alvo
calculadas, as balas
na cabeça marcada
na mente visada
na ação inadequada
cumprem a função de calar
não foi apenas o sangue
jorrado na execução
não foi apenas a carne
(negra, para não fugir das estatísticas)
caça abatida no voo, ração
provimento dos sem razão
ali, naquele automóvel
ensanguentado
e
incômodo
foi abatida a utopia
calada uma voz que era de muitos
derrubado o pilar da esperança
executada a possibilidade de redenção
(14.03.2018)
Dalila Teles Veras
do livro tempo em fúria - Alpharrabio Edições -
2019
linguagem
o que vai
de um lado da ponte
a outra
é o que sai da boca
o que entra é a língua
a que entorta
beija sem pedir licença
chupa morde goza
na entrada e na saída
sem ter adeus na despedida
Artur Fulinaíma
do livro inédito –
eu gostava mais de nós antes, amor
eu gostava mais quando passávamos as tardes de
domingo na cama
nesse tempo sonhávamos alto
e ao voltar um para o outro vínhamos trazendo nas
mãos o fogo roubado dos deuses
.
foi da tua boca que ouvi pela primeira vez sobre
as uvas que crescem nos vinhedos, em pleno deserto da patagônia
imaginei tudo em detalhes
o céu amplo
o fruto se abrindo como carne
a carne sendo devastada pela noite, num fulgor de
estrelas
.
eu gostava mais quando bebíamos vinho barato, em taça de vidro. tu às
vezes derramavas no meu ventre
era lindo ver-te bebendo dali, do abismo da minha
pele
era lindo pensar que continuarias bebendo de mim
sempre
supor que, mesmo se eu dissesse que nesse vinho
havia dissolvido a cantarella da lucrécia bórgia
mesmo assim continuarias bebendo
morrendo - por amor ao meu corpo
.
eu gostava mais de mim. de ti. de nós. gostava
mais quando ouvíamos o que quer que fosse da boca um do outro
tu me falavas a respeito da maldição que um dia
haverá de recair sobre minha família
minha casa
minha posteridade numerosa
como se estivesse ouvindo último homem vivo sobre
a terra
assim eu te ouvia, tua voz ao meu ouvido
e tu gozando dentro de mim
---
mar becker
em: para a série amar, ruir, que imagino como uma
plaquete. material em trabalho, 2019
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