domingo, 22 de maio de 2022

Artur Gom,es - 5 poemas do livro O Poeta Enquanto Coisa

 




ancestral

 

há muito tempo não recebo

cartas de ninguém

mas não rezo padre nossos

simplesmente para dizer amém

 

já fui católico rezei terços ladainhas

acompanhei a procissão dos afogados

na Tapera

para soletrar a palavra Cacomanga

e entender que o barro da cerâmica

trago grudado na minha íris retina

 

meu batismo de fogo

 foi numa Santa Cecília

entre víboras e serpentes

 

mordi a hóstia do padre

sua saia preta me levou ao pânico

de sonhar com  juízes

e hoje saber o que são

 

minha África

são os olhos negros

de Madame Satã

na língua tenho uma sede felina

na carne essa  fome pagã

sou um homem comum

filho de Ogum com Iansã

 

Dani-se morreale

 

se ela me pisar nos calos
me cumer o fígado
me botar de quatro
assim como cavalo
galopar meus pelos
devorar as vértebras
Dani-se

 

se ela me vier de unhas
me lascar os dentes
até sangrar o sexo
me enfiar a faca
apunhalar meus olhos
perfurar meus dedos
Dani-se

 

se o amor for bruto
até mesmo sádico
neste instante lírico
se comédia ou trágico
quero estar no ato
e Dani-se o fato
deste sangue quente
em tua boca dos infernos
deixa queimar os ossos
e explodir os nossos
poemas físicos pós modernos

Dionisíaca

 

hoje é domingo
de Hera me vingo
com minha sarcástica ironia

fisto-me de Dionísio
nessa festa pras Bacantes

me consagro teu amante
pelos vinhedos de Baco 
no ápice sagrado

da  su-real pornofonia

 

 

entre os lençóis

 

o outubro 
me deixou no tudo nada 
a luz branca sem sono
em nossos corpos de abandono

ela arquitetava uma nesga
entre as frestas da janela
luz do luar nos olhos dela
girassóis em desmantelos
por entre poros entre pelos
minhas unhas tuas costas 
Amsterdã nos teus cabelos 

o que Van Gog me trazia
era branca noite de outono
que amanheceu sem ver o dia 
nossos corpos estavam banhados
de vinho tinto e poesia

 

 

 

poema atávico

 

e se a gente se amasse uma vez só
a tarde ainda arde primavera tanta
nesse outubro quanto
de manhãs tão cinzas

 

nesse momento em Bento Gonçalves
Mauri Menegotto termina
de lapidar mais uma pedra 
tem seus olhos no brilho da escultura

 

confesso tenho andado meio triste
na geografia da distância
esse poema atávico tem

a cor da tua pele
a carne sob os lençóis

 onde meus dedos
ainda não nasceram

 

algum deus

anda me pregando peças
num lance de dados mallarmaicos

comovido
ainda te procuro em palavras aramaicas 
e a pele dos meus olhos anda perdida
em teu vestido

 

Artur Gomes

Do livro O Poeta Enquanto Coisa

Disponível para compra em

https://www.editorapenalux.com.br/loja/o-poeta-enquanto-coisa 


Fulinaíma MultiProjetos

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quarta-feira, 18 de maio de 2022

Artur Gomes - 5 poemas do livro O Poeta Enquanto Coisa

 


Atentado poético

 

a hipocrisia aqui é muita
liberdade muito pouca

com meus dentes

língua/navalha
vou rasgar a tua roupa

para esse poema bomba
explodir na tua boca

 

o

obscuro objeto do desejo

 

de pedra dourada ficaram portas
janelas de entradas e saídas
a sedução de dois olhos
em minha carne proibida
nem tanto pelo o que falo
nem tanto pelo que sinto
a vodka a cereja o conhac
o abismo  o labirinto

 

de pedra dourada
ficou um café orgânico
no teu sertão encantada
numa manhã de domingo
do outro lado da trilha
com tanta veraCidade
que me esqueci da idade
e me apaixonei por tua filha

 

de pedra dourada ficaram
olhos acesos do outro lado a janela
o espelho as contas de vidro
o jogo da sedução a maravilha
os passeios nas cachoeiras
os banhos de bar o carnaval
aquela delícia louca
o batom na minha língua
o cheiro das flores do mal
meu bem-me-quer a tua boca

 

bandeira nacional

 

com palavras
sons
imagens
versos
inauguro o monumento
no planalto central

 

araçá azul
domingo no parque
vapor barato
mal secreto

pérola negra
construção
cabeça Gothan City
poema concreto

 

arte poesia teatro cinema pós poema

terra em transe tropicália grande sertão
veredas vidas secas
memórias do cárcere

 

parangolés
hélio oiticica
artur bispo do rosário
bacurau

seja herói seja marginal

 

Beatriz a Faustino

 

pudesse eu divagar pelos teus poros
bosque do teu reino entre teus pelos
mergulhar contigo o mar da fonte
atravessar da carne a pele a ponte
penetrar no orgasmo dos teus selos

 

pudesse eu cavalgar por tuas crinas
no dorso cavalar onde deflora
deixando assim então de ser menina
e me tornar mulher por toda sina
no inferno céu da tua hora

 

tragédia infame

 

empresto minha voz aos deserdados os desnutridos

os que não tem pela manhã café com pão

e sobre a mesa no almoço nem mesa

nem carne seca com farinha

 

espinha de peixe na garganta

é o que sobrou pra curuminha

 

empresto meu corpo minha voz

a esses personagens

os que tem sede  os que tem  fome

ou os que morrem assassinados

 

 

 

nos guetos  nos campos nas cidades

por balas de fuzil  está fudido o brasil

entregue as traças então me resta

exterminar o nome o sobrenome o apelido

do causador dessa desgraça

 

Artur Gomes

O Poeta Enquanto Coisa

Editora Penalux – 2020

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